sábado, 26 de março de 2011

A mulher-borboleta

Reconto a história, que na narração original é bem mais longa e rica em detalhes, tomando a liberdade de usar palavras e metáforas da própria autora Clarissa Estés. Essa história é um ode ao poder feminino, um ode à beleza que há em cada uma de nós, mulheres de todas as formas, de todas as idades, de todas as tribos.  É um estímulo para o reencontro com nós mesmas, como belas criaturas que somos, somente por sermos mulheres. Em um tempo de mulheres-melancia, mulheres-morango e outras tantas figuras patéticas, divido com vocês algumas das verdadeiras faces de nós mesmas, as Mulheres-Borboleta, as Mulheres-Esqueleto, história que contarei mais tarde, a própria Donzela sem Mãos que já habita esse espaço, assim como Vasalisa e sua poderosa intuição.  No melhor espírito Sherazade, senta no teu tapete mágico por um instante , e voa com a Mulher-Borboleta.





" Lá na província longínqua de Puyé, no Novo México, existe o ritual da Mulher-Borboleta.  Descendentes dos apaches, dos navajos, dos hapis e de tantas outras tribos lá se reúnem, como num retorno às suas origens.  Para lá também rumam inúmeros turistas, com seus carros barulhentos,  suas máquinas fotográficas e suas cadeiras de armar. Esses turistas já se esqueceram de seus deuses ancestrais e por isso vão a Puyé observar os que  não esqueceram. Passam horas no calor poeirento, assistindo a uma série de apresentações que culminarão com a dança de uma só pessoa: ela, a Mulher- Borboleta!  A expectativa de se deparar com a frágil, delicada e diáfana Mulher-Borboleta é tremenda. Porém  os turistas ficam perplexos quando surge, aos saltos, María Lujan: Ela é grande, grande mesmo, e velha, muito velha, como uma mulher que voltou do pó; velha como um rio velho, velha como as mais velhas montanhas.  Ela usa uma manta vermelha e preta que deixa à mostra um de seus ombros, e traz asas de borboleta do tipo que as crianças fazem na escola.   Seu cabelo é de um cinza cor de pedra e vai até o chão e seus quadris e a barriga são enormes. Suas pulseiras de contas chocalham como cascavéis, suas ligas de guizos produzem o som da chuva.   Ela salta num pé só, e depois no outro.  Ela abana seu leque de penas por toda a parte.  Ela é a Borboleta que chegou para dar força aos fracos.  Ela é o que a maioria considera não ser forte; a velhice, a borboleta, o feminino.  Ela abana seu leque de penas e saltita porque está derramando pólen espiritual sobre todos os presentes.  Enquanto as tribos a fitam reverentes, os turistas a encaram decepcionados: Aquilo é a Donzela Borboleta? Parecem não mais se lembrar de que,  no mundo dos espíritos, as  mulheres são lobos, os maridos são ursos e as velhas de dimensões avantajadas são borboletas.Sim, é correto que a Mulher Borboleta seja velha e corpulenta, pois ela traz o mundo dos trovões num seio, e o mundo subterrâneo no outro.  Suas costas são a curva do planeta Terra com todos os seus frutos, alimentos e animais.  Na sua nuca, ela traz o sol nascente e o poente.  Sua coxa esquerda guarda todos os pinheiros; sua coxa direita, todas as lobas do mundo. Em seu ventre estão todos os bebês que um dia irão nascer.   A Donzela Borboleta é a força feminina fertilizadora.  Ela poliniza as almas da terra.  Ao transportar o pólen de um lugar para ou outro, ela fecunda por cruzamento, da mesma forma que a alma fertiliza a mente com sonhos...  Ela aproxima os opostos ao tirar um pouco daqui e levar para lá.  A transformação não é nem um pouco mais complicada do que isso.  É isso que a borboleta faz.  É assim que a alma atua.
A Mulher –borboleta corrige a idéia equivocada  de que a transformação é só para os torturados, para os santos, ou apenas para os tremendamente fortes.  O Self não precisa mover montanhas para se transformar.  Um pouco basta.  Um pouco vai longe.  UM POUCO MUDA MUITA COISA.
A intérprete da dança da borboleta tem que ser velha por representar a alma que é velha.  Ela é larga de coxas e ancas por carregar tantas coisas.  Seu cabelo grisalho garante que ela não precisa mais obedecer ao tabu do contato com outras pessoas.  É permitido que ela toque a todos: meninos, bebês, homens, mulheres, os idosos, os enfermos, os mortos.  É seu o privilégio de tocar a todos, esse é o seu poder. Seu corpo é o de La Mariposa, a borboleta. Ela é a intérprete da força instintiva, fertilizante, a que conserta, a que recorda antigas idéias.  Ela é “ La Voz Mitológica”. Ela é a encarnação da Mulher Selvagem."
FIM

Reflexões da autora:

  Está errada a imagem vigente da nossa cultura do corpo exclusivamente como escultura.  O corpo não é de mármore.  Não, não é essa a sua finalidade.  A sua finalidade é de proteger, conter, apoiar e atiçar o espírito e alma em seu interior, a de ser um repositório para as recordações, a de nos encher de sensações – ou seja, o supremo alimento da psique.  É a de nos elevar e de nos impulsionar, de nos impregnar de sensações para provar que existimos, que estamos aqui, para nos dar uma ligação com a terra, para nos dar volume, peso. É errado pensar no corpo como um lugar que abandonamos para alçar vôo até o espírito.  O corpo é o detonador dessas experiências.  Sem o corpo não haveria a sensação de entrada em algo novo, de elevação, de altura, leveza.  Tudo isso provém do corpo.  Ele é o lançador de foguetes.  Na sua cápsula, a alma espia lá fora a misteriosa noite estrelada e se deslumbra.
 * * *


A mulher selvagem pode compreender seu corpo, não como um peso morto que estamos condenadas a carregar por toda a vida, não como uma besta de carga, mimada ou não, que nos carrega por aí pela vida inteira, mas como uma série de portas, sonhos e poemas através dos quais podemos obter todo o tipo de aprendizado e conhecimento,  Na psique selvagem, compreende-se o corpo como um ser por seu próprios méritos, que nos ama, que depende de nós , para quem de vez em quando, somos a mãe e que, de vez em quando, representa a mãe para nós.