terça-feira, 15 de setembro de 2015

Sobre os contos de fadas...

Peguei um livro na biblioteca- parque : Contos de Grimm. Uma coleção bem grande de contos que foram eternizados pelos irmãos Jacob e Wilhelm.  Os contos desse livro, que não são todos os contos que os irmãos coletaram , foram escolhidos para compor esse obra por , nada mais nada menos, que Clarissa Pinkola Estés ! É aquela de quem você já falou tanto, que escreveu Mulheres que correm com os lobos?  Ela mesma ! Analista Junguiana, Doutora em Estudos Multiculturais e Psicologia Clínica, Clarissa faz um prólogo superinteressante sobre os contos de fadas...  E as ilustrações são de uma fera do fim do séuclo XIX , senhor Arthur Rackham, a quem eu também  passei a conhecer agora e já estou adorando...

Sim, pois é, estou escolhendo com carinho uma ou mais histórias dos irmãos Grimm para o blog...
Enquanto isso, deixo uma citação da Clarissa, que achei o máximo.  Ah, e uma linda gravura do Rackham, só pra dar água na boca...

"Embora os contos de fadas terminem logo depois da décima página, o mesmo não acontece com a nossa vida. Somos coleções com vários volumes. Em nossa vida, ainda que um episódio possa terminar mal, sempre há outro à nossa espera e depois desse, mais outro.  Sempre há novas oportunidades para consertar o estrago, para moldar nossa vida da forma que emocionalmente merecemos.  Não perca tempo odiando um insucesso. O insucesso é um mestre melhor do que o sucesso. Escute. Aprenda.  Continue.  Essa é a essência de todo conto.  Quando prestamos atenção a essas mensagens do passado , aprendemos que há padrões desastrosos, mas também aprendemos a prosseguir com a energia de quem percebe as armadilhas, jaulas e iscas antes de depararmos com elas ou de sermos nelas ou por ela capturados." 

 



 

domingo, 30 de agosto de 2015

A sala mágica

Chamei a esse conto de A sala mágica.  No entanto, podia chamar-se Conto de mim mesmo... Espero que gostem.  É o meu primeiro conto oficial...
Como bem disse Marcel Proust: "A real magia não está em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos."


Era uma vez uma sala mágica. Nela havia vários elementos mágicos , que se bem usados poderiam trazer o bem a várias pessoas. A sala era como um grande baú mágico, que abrigava um tesouro doado por um grande e poderoso rei a um pequeno camponês-menino, muito, muito antes do menino nascer. Em vez de manter o baú em algum de seus castelos, cercado de candelabros e tapeçarias maravilhosas, o rei achou por bem guardá-lo em um sala simples e rústica da pequena casinha onde morava o menino-camponês.
O menino cresceu e só quando já era homem tomou conhecimento da existência daquele cômodo mágico em sua pequena morada. Seus pais já haviam partido numa viagem muito longa, aquela viagem que todos iremos fazer, e o homem, que um dia foi menino, descobriu a sala exatamente no dia em que o rei , muito sábio, havia determinado que a sala se revelasse. Havia um problema, porém. A sala não tinha janela ou porta, e assim não era possível nela entrar... 
* * *
Por bastante tempo, enquanto trabalhava nos campos, o homem-que-foi-menino matutava sobre a sala e o tesouro que nela estava contido. Enquanto guiava o arado, puxado pelo velho cavalo da família, que ainda não tinha partido naquela viagem que os animais também fazem, imaginava o tesouro dentro da sala: seria ele composto de quê? Pedras preciosas do tamanho de ovos de galinha, imaginava.  Moedas de ouro tantas quantos as sementes que derrubava no solo, pensava.  E enxugava o suor na manga da camisa enquanto arava, e enquanto arava, sonhava. E conversava com o velho cavalo enquanto trabalhavam, explicando como teriam conforto e uma vida tranquila quando finalmente descobrisse como entrar na sala.
À noite olhava o escuro do céu e escutava as estrelas, afinal ninguém sabe por  quais meios os segredos nos serão revelados;  ouvia com atenção também os grilos, e de sua cama solitária tentava entender o pio das corujas,  até que o cansaço do dia o levava atá a porta da sala, se abrindo lentamente ... mas , sempre nessa hora, o canto do galo o sobressaltava e o brilho do sol fazia desaparecer a porta e a sala.
No fim, foi o cavalo que mostrou o caminho. Afinal, já fazia tempo que não iam à cidade, e o cavalo lhe ruminou a ideia,  junto com mais um bocado de feno que o homem lhe dava. Na cidade , quem sabe, ele descobriria como entrar na tal sala, e como se apossar do sonhado tesouro. Não que a ele, cavalo, o tesouro fizesse falta. Tinha vivido uma vida boa ali, seus músculos fortes arando o solo e tocando a pedra do moinho, agora sem uso. Era bem alimentado e escovado e, nas noites mais frias, o menino-que-agora-era-homem vinha ao estábulo e colocava-lhe uma manta quente nas costas. Lembrava que o menino era tão pequeno que precisava subir num banco de madeira para lhe ajeitar a manta cor-de-fogueira sobre o dorso.  Nessa hora, o pequeno sempre lhe contava algum segredo ou travessura, e nunca ia embora sem um afago na orelha e um punhado de aveia. 
Aos domingos, não havia trabalho, e o cavalo podia perambular pelo pasto e fazer o que quisesse; algumas vezes, porém, a família decidia ir à cidade, e ele era atrelado à charrete, e num trote ritmado, que fazia tocar os guizos presos aos arreios, desciam pela estrada de terra até o movimento  da cidade, na realidade uma pequena vila.  O cavalo gostava dali. Observava os humanos que se agitavam em inúmeras tarefas, enquanto descansava sossegado junto a outros cavalos de montaria , debaixo de uma árvore-gigante. Foi numa dessas idas à  pequenina cidade que, certa vez, o pai do menino trocou vários sacos de grãos por uma linda égua  cor-de-vento,  e ele passou a ser o mais feliz dos cavalos, com uma companheira de sua espécie.
Talvez por isso, tenha ruminado a ideia. Na vila talvez não estivesse a resposta de como encontrar a porta para o tesouro mágico, mas outra mágica poderia bem despontar. Afinal, já estava mais que na hora do menino encontrar uma companhia; a do velho cavalo já tinha partido, e não levaria tanto tempo assim para  reencontrá-la.  Preocupava-se em deixar o menino-agora-homem sozinho, com ou sem tesouro. E, tendo os dois concordado em silêncio, partiram bem cedo na manhã seguinte, como tantas vezes haviam feito, cavaleiro e cavalo, cada um com seus pensamentos.
* * *
O sol já passava por entre os galhos mais baixos das árvores quando homem e cavalo tomaram o caminho de volta para casa. O ar já esfriava e logo uma ou outra estrela se mostraria no céu, mesmo antes da escuridão tomar conta de tudo. Seres mais cautelosos, como os pássaros, apressavam-se por chegar à segurança de seus ninhos, gritando uns aos outros para que não se atrasassem, mas o cavaleiro não tinha pressa, vinha distraído, o pensamento em tudo o que a moça dissera.  Conversaram longamente sentados à beira do poço da vila, e ela lhe falou o seu nome, e sobre os últimos acontecimentos da cidade, os casamentos e nascimentos, a festa da colheita, e  os ciganos que haviam por lá passado, tocando e dançando não fazia muito tempo. Contou que estava costurando um vestido cor-de-maçã para usar em seu noivado, que seria em breve, assim que encontrasse um noivo à altura.
Ele então falou-lhe dele e da pequena fazenda, da plantação e do moinho, e,  num arroubo impensado, contou sobre a sala do tesouro e a porta mágica, que em breve iria encontrar. E nos vestidos, um para cada cor do arco-íris, com os quais iria presentear a noiva que brevemente teria, assim que a porta finalmente fosse aberta.
O cavaleiro só percebeu a chegada da noite quando o cavalo, inquieto, abandonou o trote, não confiando totalmente que o dono estivesse atento aos buracos da estreita estrada, e a algumas raízes que saíam da mata, como braços que atravessassem o caminho. A noite caiu escura sem a presença da lua, o ar ficou frio, e o cavalo ansiava por chegar à fazenda. Na última curva antes da cerca, contudo, encontraram o estranho.
* * *
 O fazendeiro partiu bem cedo no dia seguinte em direção de onde o sol nasce, apenas com um cantil e algum alimento para a jornada. Partira sem o cavalo, pois como lhe alertara o estranho,  o caminho era muito íngreme para uma montaria, serpenteando em torno da montanha, que ele só conhecia de longe, sua silhueta no horizonte envolta em farrapos de algodão. Uma vez perguntara ao pai por que nunca era possível ver o cume daquela montanha, e o pai não soube respondê-lo.  Ensinou ao menino, porém, a identificar as nuvens que em seu pico se acumulavam, as nuvens fofas que traziam chuvas leves para a lavoura, as  rasgadas e finas carregadas de ventos que destelhavam o estábulo e derrubavam cercas, e sobre as nuvens pesadas e negras que traziam tempestades e raios, perigosos riscos de fogo capazes de queimar árvores e animais soltos no pasto.
O estranho, diferente do pai, sabia muitas coisas. Sabia que na névoa da montanha morava um velho muito poderoso, e o rapaz logo imaginou que seria o rei que tivesse lhe deixado a sala mágica. O estranho sabia do tesouro e da moça que seria sua noiva, pois havia recolhido no poço da vila palavras trocadas entre os dois. Outras palavras, no entanto, tinham sido trocadas ali, depois que o rapaz partira, confidenciou-lhe o estranho; palavras entre a moça e um galante e rico nobre que chegara à  cidade logo depois. Era bom que o rapaz se apressasse e fosse exigir do velho rei a solução do enigma da porta mágica.
No estábulo, naquela noite anterior à partida, o cavalo não conseguiu convencer o dono que confiar num estranho, parado numa estrada estreita numa noite sem lua era, no mínimo, imprudente. Não conseguiu convencê-lo tampouco a deixar que lhe acompanhasse naquela jornada intempestiva ."Ele já está velho demais para essa aventura" pensava um. "Ele já não é tão jovem para ser tão tolo", pensava o outro. E assim, cada um com seus pensamentos, se separaram.
* * *
 O fazendeiro estava cansado.  E confuso.  Não sabia quanto tempo havia passado, desde que partira naquela jornada insensata de achar um rei que não queria ser encontrado.  O caminho  montanha-acima era estreito e íngreme,  e moitas espinhosas  avançavam em seus tornozelos vez em quando. Andara por muito tempo e não encontrara  nem castelo, nem rei, nada. Somente pássaros cor-de-carvão voavam em círculos no céu,  soltando lamentos; quando a neblina o envolveu totalmente, alimentou a esperança que, de repente,  ela se rasgaria e permitiria o vislumbre do palácio ou fortaleza onde o rei certamente vivia. Porém a neblina era cada vez mais  densa e escura, e o ar cada vez mais frio. Já não conseguia enxergar por onde ia e por duas vezes, apavorado, sentiu o pé  resvalar no cascalho, o caminho agora beirando um precipício escondido na bruma. Quando o dia virou noite, e os raios começaram, ele já tinha esquecido rei e tesouro, querendo, apenas, voltar para seu pequeno rancho, seus bichos, o moinho sem uso e sua plantação. A chuva torrencial, no entanto, o atrasava, deixando o chão escorregadio demais; de repente, um raio fulminou uma árvore bem ao seu lado, deixando-o trêmulo de medo. Com frio, fome, molhado e cego pela noite que o cercou , chegou ao sopé da montanha e, trôpego sob a chuva enregelante , fez a longa caminhada de volta. Tão exausto estava e tão escura era a noite que não percebeu nada, a cerca caída,  o estábulo destelhado, os silos inundados;   fechou  atrás de si a porta da pequena casa e, jogando-se no leito,  despencou num sonho terrível, onde toda a pequena fazenda submergia na chuva maligna.
O sol do dia seguinte mostrou os estragos que a intempérie furiosa cobrou de sua ausência: galinhas e patos não haviam sido recolhidos e tinham fugido apavorados, e o homem passou toda a manhã procurando por eles no mato alto.  O telhado do depósito fora arrancado pelo vento, e como ele não estava ali para mover os sacos de grãos  para um lugar seco, a produção da última colheita estava encharcada e perdida. A cerca poderia ser colocada de pé com dois dias de trabalho, refletia.  O que mais lhe afligia, no entanto,  era o fato do cavalo ter passado a noite toda debaixo da chuva torrencial: a cobertura do estábulo havia sido arrancada de uma só vez e o animal, trancado como estava, não  tivera chance procurar um outro lugar para se abrigar.  Tivesse ele estado ali, e não não em uma aventura idiota, teria previsto a tormenta através dos ensinamentos do pai, e tomado os cuidados necessários para proteger seu pequeno mundo.
Conversou longamente com o cavalo, enquanto lhe escovava o dorso e trocava a palha encharcada . Contou-lhe sobre a montanha e seus perigos, e que, apesar de seu esforço,  não tinha  encontrado uma pista sequer do tal rei que teria lhe dado o tesouro.  Relatou como ficara com medo, tão só  e perdido dentro da noite escura; contou do pesadelo, e das medidas que iria tomar na fazenda para colocar tudo em ordem outra vez. Omitiu somente um fato ao cavalo: de que,  no fim do caminho de volta, na noite anterior, encostado à parede da casa,  o estranho o aguardava.
* * *
O homem-que-um-dia-foi-menino nunca tinha trabalhado tão duro no arado, refletia o cavalo, enquanto faziam mais uma volta para sulcar outro pedaço de terra. Nunca tinha acordado tão cedo e estado tão atento às tarefas da fazenda e ao estoque de grãos.  Apertava os olhos em direção à silhueta da montanha, tentando ler os sinais do tempo,  e cuidava diligentemente dos preparativos para ir até a cidade-depois-do rio, onde , segundo ele, venderia sua produção pelo dobro do que lhe pagavam na vila próxima.
O cavalo, porém, intuía. Algo estava errado. No rosto do menino-agora-homem, faltava algo. Nos seus olhos, faltava algo. E na voz... ah, na voz faltava uma espécie de música , música que ele lembrava ter ouvido naquelas distantes noites no estábulo, quando ele e o menino partilhavam segredos. Música que também existira, o cavalo recordava, quando o rapaz ainda falava no tesouro. As palavras salaporta e tesouroporémhaviam sido enterradas bem fundo na terra dura onde nada se plantava, e o cavalo desconfiava que lá o rapaz havia enterrado outras palavras como casamentosnascimentos,  ciganos e vestidos-cor-de-arco-íris.
Naquela manhã, o homem-que-nem-parecia-aquele-menino colocou na carroça o último saco de grãos a ser vendido, mais um cantil de água e mantimentos suficientes  para  a viagem de ida e volta, e também para o tempo que seria necessário passar, na cidade grande, negociando o preço ideal pelo fruto de seu trabalho. Com a expressão séria, provisionou feno e aveia suficientes também para o companheiro de estrada. Tendo tomado todas as medidas para garantir a sobrevivência e segurança dos pequenos animais do rancho durante sua ausência, fechou a porteira e subiu na carroça antes do sol ter chegado ao meio do céu.
Na encruzilhada, onde o caminho da vila se afastava do outro que levava à cidade-depois-do-rio, o cavalo tomou a decisão. A intuição lhe fez empacar antes de cruzar a ponte.  Algo estava errado, o animal  voltou a pensar. Algo havia se perdido, e precisava ser reencontrado. O rapaz ficou exasperado ao perceber que o cavalo estava determinado a não seguir suas ordens. Precisava da carroça para levar os sacos de grãos, não tinha como seguir sozinho, era preciso que o animal entendesse a seriedade de seus negócios. O animal, no entanto, estava irredutível.  Bufava, e forçava os arreios , virando-se para seguir para a vila. O rapaz , irritado, gritou que o cavalo era estúpido, e  puxou o arreio com brusquidão. O cavalo, apesar da idade, era forte e aguentou o tranco.  Relinchou de volta que o dono era teimoso e deu um puxão , estremecendo a carroça. O rapaz esbravejou que nada tinha a fazer nem ver naquela vila sem futuro, e o cavalo, em resposta, ameaçou empinar e virar  tudo. Foi  nessa hora em que o conflito cortava o ar como faca que, vindo de nenhum lugar, a velha surgiu.
* * *
Talvez fosse uma cigana, pensou o rapaz.  Isso explicaria sua aparência bizarra, tão diferente das anciãs que conhecia. Desgrenhados cabelos cor-do-vento espalhavam-se até a cintura, sobre o  xale de lã  cor-de-fogueira.   Seus pés apareciam descalços por baixo da longa saia rodada, que tinha a cor de maçãs na primavera. Trazia na mão enrugada  uma espécie de balde de estanho, cheio de furos, em formato de um pequeno caldeirão.  Era muito, muito velha, por isso o rapaz se assustou quando, com um salto, ela subiu na carroça e sentou-se ao seu lado.  Não pronunciou palavra, apenas o fitou com olhos brilhantes e, com o queixo indicou o caminho a seguir.
O cavalo os guiou devagar pela estrada ladeada de árvores, enquanto a tarde se despedia do dia. Algumas casas da vila já exibiam a luz amarela de lampiões nas janelas, quando a carroça finalmente parou junto ao poço, já deserto. 
O coração do jovem encolheu. Não queria voltar ali. Não queria lembrar o que o estranho lhe contara, ao voltar tão exausto da montanha. Não queria sentir-se de novo ingênuo e tolo, ao saber que aquela com quem sonhara preferira aceitar uma vida de facilidades ofertada pelo afetado nobre, ao invés  do amor simples e sincero que o rapaz tinha para lhe oferecer.
A velha , porém, decidida, ignorou a dor do coração do jovem e, em silêncio, jogou o estranho caldeirão no poço. O cavalo notou uma fina corda que prendia o caldeirão ao pulso da velha, e aprovou com a cabeça quando ela começou a içar , lá do fundo, as palavras ali trocadas entre o fidalgo e a moça, naquele dia já tão distante. A noite tomou conta de tudo e já não havia mais ninguém  na praça, além deles, para ouvir as palavras indecorosas do nobre devasso à jovem, primeiro propondo, e depois ameaçando-a, caso não cedesse às suas investidas. O rapaz, com o coração aos saltos, ouviu primeiro os nãos da jovem, e depois os seus gritos, quando o incauto a segurou pelos pulsos, inclinado-a perigosamente sobre o poço.
Outras conversas vieram depois, içadas pela velha: vozes  barulhentas de mulheres que iam cedo buscar água, e estranhavam  a ausência da  jovem; palavras em voz baixa trocadas entre homens sobre o destino da pobre-moça-sozinha contra o fidalgo a quem ninguém ousara enfrentar.  Enfim, a velha puxou para cima rumores em vozes infantis que falavam que a moça havia conseguido fugir de seu algoz e  embrenhara-se na floresta.
O rapaz, de repente, sentiu-se muito cansado.  A escuridão da noite o envolveu, e já não havia mais luz nas janelas das casas simples da vila, apenas portas fechadas e solidão. A velha o ajudou a deitar-se na carroça sobre os sacos de grãos, e o cobriu com seu xale cor-de-fogueira. Então, enquanto oferecia água e feno ao cavalo, soltando-o dos arreios, começou e entoar uma canção muito antiga, que fazia as pestanas pesarem e os olhos se fecharem. E, quando homem e animal mergulharam num sono sem  sonhos, a velha a se ajeitou na boleia e velou por eles até a aurora, observando as estrelas cruzarem o céu.
* * *
O tempo passou,  como é hábito do tempo passar. O rapaz voltou à sua fazenda, e apesar de sua tristeza, foi tocando  a vida e seu pequeno mundo. Passou a ir amiúde  à vila, onde conversava com os moradores,  e ouvia suas histórias e dificuldades.  Aprendeu, por exemplo, que os grãos que vendia na vila eram revendidos  na cidade-depois-do-rio, para voltarem em forma da  farinha que fazia o pão diário. Pão este que estava cada vez menor com o passar do tempo. Ouviu que havia camponeses já sem campos  para cultivar  e famílias cujas crianças iam dormir sem um prato de mingau. Foi, então, que teve a ideia.
Ele iria reativar o moinho. Moeria sua própria produção de grãos e também a dos fazendeiros vizinhos. Precisaria de gente para ajudar no trabalho e lembrou que os camponeses-sem-campos poderiam exercer a prensagem e ensacamento da farinha, garantindo o sustento de suas famílias.
O rancho ganhou vida nova. O cavalo viu, atônito, outros cavalos e bois chegarem, trazido por seus donos, para tocar a grande mó. Homens novos e velhos iam e vinham , no afã de consertarem as pás  do moinho, há muito rasgadas pelo vento. Conversas e risadas femininas eram ouvidas em torno do fogo, onde mulheres cozinhavam para maridos e filhos, enquanto esses laboravam.
O rapaz-que-foi-menino acompanhava os trabalhos, ajudando a todos, incentivando os mais novos e acatando a sapiência dos mais velhos. Tão envolvido estava naqueles dias que não percebeu, na parede de seu pequeno quarto, o contorno de uma porta que começava a se desenhar no reboco.
Quando o moinho ficou pronto, alguém sugeriu fogueira e música para comemorar o feito. Bolos foram assados e um barril de vinho foi trazido não-se-sabe-de-onde. Famílias vieram da vila em suas melhores roupas, moças com fitas nos cabelos e  rapazes de faces coradas e olhos brilhando. Quando as primeiras estrelas apontaram no céu, a silhueta da carroça dos ciganos se destacou na estradinha poeirenta, e com ela veio o som da gaita e do violino. O rapaz, já aquecido pelo vinho, saudou os recém-chegados e os convidou a participar da festa; seu coração, porém, quase parou ao ver saltar, junto com os ciganos, a moça com quem um dia sonhara. A Velha a trouxe pela mão , e ela sorriu um sorriso que se entornou no peito do jovem.
A inauguração do moinho logo transformou-se em festa de casamento. E, depois daquela noite de dança e núpcias, a porta da sala mágica revelou-se ao jovem casal por inteira, mostrando os bens maravilhosos que, se usados com sabedoria,  seriam sinônimo de saúde, riqueza e felicidade, para eles e para muitos.
* * *
Gostaria de dizer que o estranho sumiu na poeira da estrada e nunca mais foi visto por aquelas bandas.  A vida, porém, não é assim, e ao longo do tempo, de quando em quando, o estranho aparecia. Às vezes, insinuava que o tesouro mágico não iria durar para sempre e era melhor o rapaz guardá-lo só para si, em vez de preocupar-se com os outros. Às vezes falava que a beleza da jovem esposa era comentada pelos homens fortes que trabalhavam no moinho. Quando lhes nasceu o filho, trouxe  notícias de uma febre que vinha levando para sempre as crianças da região. Em todas essas ocasiões, o rapaz saía para um longo passeio pelos  pastos, somente com o velho cavalo a seu lado. Explicava-lhe seus pensamentos e temores, e ouvia com atenção as ponderações do velho amigo. Que, qualquer dia, iria embarcar naquela viagem que os animais também fazem. Mas só quando chegasse a hora. E assim, homem e animal, pensando os mesmos pensamentos, quando voltavam para casa ao pôr-do-sol, percebiam que o estranho tinha partido para sempre, até a próxima vez.


terça-feira, 12 de maio de 2015

A fênix, mais uma vez


A fênix é um ser que entende o sofrimento da angústia. Um ser que se consome e se deixa consumir, perde a cor, adoece. Não consegue mais voar. Chega mesmo a virar cinzas, cinzas que são resultado da queima da matéria e da energia, do corpo e da alma, do pensamento e da emoção...

Mas a fênix renasce. Cria forma onde já não havia esperança. Cresce. Empluma. Fortalece. Incendeia, torna-se gigante, pelo sopro de seu Criador. Na injustiça grita seu canto que estremece, na compaixão se envolve derramando a lágrima que cura...

A fênix está tatuada em meu coração. Meu coração é uma fênix em chamas, renascido a cada ciclo de desterro, cinzas, ressurgimento e voo.

Ser fênix não é facil. Não é algo que se escolhe ser. Consumir-se até as cinzas não é algo que se deseje passar, ainda mais de forma cíclica. Wolverine não queria seu esqueleto de adamantium.  Highlander não queria ser imortal. Dói. Dói muito. Mas quando se entende o que é ser uma fênix, aprendemos coisas, coisas como a consolação e a desolação. Passar pelo vale das sombras. Saber que o fogo do Espírito vai nos incendiar no momento mais negro da escuridão . Confiar. Acreditar. E jamais largar a mão do Criador.