De como a Gata Borralheira levantou-se sobre seus pés descalços e sujos da fuligem da lareira onde cozinhava, atravessou o piso gélido da mansão de seus antepassados, (agora dilapidada e decadente nas mãos de usurpadoras), abriu a porta dos fundos usada só pelos serviçais, e saiu enfrentando a noite escura carregada de neve e tempestade, em busca de seu verdadeiro lugar no mundo.
Era um vez, como todo mundo sabe ou pensa que sabe, uma linda princesa que, ficando órfã de sua amada mãe, recebe uma nova “ família” através do casamento de seu pai com uma mulher que traz consigo suas horrorosas filhas, para serem “irmãs” da princesa.
O pai amoroso mas tolo, como todo homem que se deixa iludir até hoje por palavras de elogio à sua hombridade e importância, ditas por aves de rapina que desejam arrumar quem lhes sustente, deixa a criação de sua linda e preciosa filha aos cuidados dessas mulheres sem escrúpulos. O pai amoroso mas omisso escolhe não ver o que salta aos olhos de todos, de que aquele casamento era um erro que só trazia infelicidade e discórdia, além da bancarrota.
O pai amoroso mas frágil ainda fez o favor de morrer, selando assim a sorte de sua pequena e desprotegida criança, que de menina culta e prendada passa a empregada pobre, humilhada, faminta e gelada, explorada pela maldade e indiferença das invasoras.
Todo mundo sabe, ou pensa que sabe, o que vem depois. A carta para o baile que iguala a todas as moças do reino no direito de sonhar com o príncipe, as artimanhas da madrasta para impedir que a princesa compareça ao evento da nobreza, a fada-madrinha que providencia uma janela mágica de sonho ... E o momento que a princesa se vê no mundo ao qual realmente pertence, de riqueza, cuidado e proteção.
Final feliz? Ainda não. Porque seguindo o encantamento a princesa tem que sair de modo intempestivo do baile, deixando como pista apenas um delicado sapatinho de cristal.
A história segue na procura de tal moça pelo mordomo do rei, que irá de casa em casa experimentar o sapatinho até encontrar a felizarda.
E é aí que eu me pergunto onde estava o príncipe numa hora dessas? Sim, tá certo que ele não tinha como saber das agruras sofridas por sua amada, caso contrário deveria ter saído em seu cavalo branco, de espada em punho para resgatá-la ( o que é o sonho da princesa que vive em cada uma de nós). Nesse momento ele ainda procurava uma boneca, era ainda necessário empreender sua própria viagem de conhecimento para saber que o que realmente buscava era sua metade.
Por isso acho que, depois do baile, a princesa volta à mansão que é sua por direito, olha em volta as paredes nuas que abrigaram caríssimas tapeçarias, o chão muitas vezes por ela esfregado que outrora era coberto de macios tapetes, a cadeira vazia do pai que ainda lhe arde o peito, e tomada de coragem, e de talvez um xale em farrapos, decide abandonar o borralho e partir, queixo levantado e cabelos ao vento, em busca de sua auto-estima.
O Príncipe? Esse, se realmente merecê-la, deverá também enfrentar o escuro e a neve da noite, partir em cega busca guiada apenas por seu coração, a incerteza consumindo sua razão no medo de perder, para o mundo ou para outro, o único tesouro de toda a sua vida.
Como na história da Donzela sem Mãos, onde o rei caminha errante por sete anos em busca de sua amada rainha, encontrando-a enfim na floresta, e com ela voltando a casar-se, confirmando assim que existe um Amor que vale a pena...
Conclusão: Cabe a nós levantarmos do borralho , colocar-nos sobre os nossos pés e caminhar em busca de nossa felicidade. Libertemo-nos pois das cinzas da piedade e da falta de estima. Temos direito ao castelo. Vamos em busca dele. Quem estiver apto a essa jornada, se juntará a nós nesse caminho, confirmando a crença que o Amor pode vencer o Mal. Desde que seja o Amor Verdadeiro, aquele que suporta, crê , entrega , confia e espera. Um Amor com um escudo de luz e uma espada da coragem.