sábado, 13 de abril de 2013

Barba Azul, ou o predador que habita em nós

Transcrevo o conto conforme contado por Clarissa Estés porque ninguém, acho, poderia contar melhor...
História clássica que representa o predador que habita em nosso íntimo, que nos sabota, que nos aprisiona e que nos consome... Mas que pode e deve ser vencido, constantemente, plagiando outro clássico , dessa vez em forma de desenho do gênio Disney : O Príncipe Felipe desafia e vence o dragão, na realidade Malévola, com o escudo da virtude  e a espada da verdade.  À Bela Adormecida, voltarei depois.  Agora, senta que lá vem história !!!

"Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo já que ninguém mais se dispunha a nele tocar.Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor do índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.
Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.
"Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim", começaram a pensar as irmãs.
Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram quem não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia menos azul.
Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.
- Vou precisar viajar por algum tempo - disse ele um dia à mulher. - Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem nos altos uns arabescos, você não deve usar.
- Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo. - E assim ele partiu, e ela ficou.
Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente.
- Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é o aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.
As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada.
Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.
- Talvez essa chave não sirva para abrir nada - Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho - errrrrrr. - Deram uma espiada na esquina do corredor e - que surpresa! - havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
- Irmã, irmã, traga sua chave - gritou uma delas - Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
- Irmã, irmã, traga uma vela. - Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco mais para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.
Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!
A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
- Oh, não! - exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.
A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha, pois a chave verteu lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
- Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina - ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após a outra de sangue vermelho.
Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
- Ai, o que vou fazer? - lamentou-se ela. - Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo. - E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
- E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
- Tudo bem, senhor.
- Como estão minhas dispensas? - trovejou o marido.
- Muito bem, senhor.
- E como estão meus depósitos de dinheiro? - rosnou ele.
- Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
- Então, tudo está certo, esposa?
- É, tudo está certo.
- Bem - sussurrou ele - então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
- Onde está a menorzinha?
- Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
- O que você fez com ela, mulher?
- Não... não me lembro.
- Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
- Sua traidora! - rosnou, jogando-a no chão. - Você entrou naquele quarto, não entrou?
Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, machado de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.
- Chegou a sua vez, minha querida - berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.
- Vai ser agora!!! - rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.
- Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.
- Está bem - rosnou ele - Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.
A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muralhas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.
- Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?
- Não vemos nada, nada na planície nua.
A cada instante ela gritava para as muralhas.
- Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?
- Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.
Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.
- Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? - gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.
- Estamos, estamos vendo nossos irmãos - exclamaram as irmãs. - Eles estão aqui e acabaram de entrar no castelo.
O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.
- Vim apanhá-la - gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da argamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que o Barba-azul entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que caísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão. Matando-o afinal e deixando para os abutres o que sobrou dele. "

O quarto secreto




Vítimas de vítimas

Pra quem já teve oportunidade de ler Louise Hay ("Você pode curar sua vida"), o que vou falar aqui não é novidade, mas não deixa de ser uma reflexão bem legal sobre as nossas próprias dores... Lembram que sempre disse que o objetivo desse papiro é ser lenitivo e bálsamo? Pois é.  Então queria falar sobre algo com que me deparei no livro da Louise: a consciência de que somos, todos, vítimas de vítimas...
Segundo a autora, seguimos repetindo em nossa vida, muitas vezes, padrões e comportamentos que estão arraigados em nós, padrões e comportamentos que vivenciamos, provavelmente na infância mas também em outras épocas de nossa vida... Mesmo que esses padrões sejam negativos ou destrutivos, o que nos leva a repeti-los, inconscientemente, é que já sabemos como lidar com eles: a crítica, o abandono, a mentira, o desamor... O que ficou registrado lá trás, pela ótica da nossa criança interior, é o que vale, não importa se verdade ou não, o que conta foi como ela captou e vivenciou a experiência. E a criança, pequena que era (e que ainda vive em nós), não tinha como  entender as dores e feridas dos que então nos machucaram, não tinha como colocar tudo numa ótica mais real, pesar e ponderar sobre as dificuldades e carências de cada um...  Nossa criança registrou apenas a crítica, a mentira, ou aquilo que ela entendeu como abandono e desamor.
Mas...  para libertar-se dos medos, fobias, inseguranças, traumas, e tudo o mais que acorrenta a nossa alma, temos que  voltar ao passado?  Trilhar as mesmas dores, reencontrar os nossos monstros, que a custo colocamos pra dormir? Abir de novo as chagas que considerávamos esquecidas?
A grande resposta é que todas essas mazelas  estão no presente, e não no passado. Estamos arrastando-as por aí, como grilhões de prisioneiros, como correntes de fantasmas, como espectros assustadores em filmes de terror.. Abrir a porta do quarto, atravessar a escuridão de nós mesmos, tropeçar em esqueletos mutilados e tatear até a janela, abrindo-a com autoridade para que a luz volte a brilhar em nós,  como bem reconta  Clarissa Estés no clássico "Barba Azul" é a chave que nos liberta.
Aí, sei lá, lendo isso tudo, escrevi esse texto , que divido com vocês:


Há pessoas que têm tanto medo de perder alguém
Talvez porque já sofreram a perda há muito tempo
Foram abandonadas, no sentido literal da palavra
Deixadas de lado, deixadas pra trás
E por mais que encontrem um porto seguro em suas vidas
Se não conseguirem se libertar dessa dor que as consome
Vão seguir por aí cometendo erros
Correndo atrás de quimeras porque não querem enfrentar
Sua própria dor no espelho.
Guardaram sua dor
Num armário muito escuro
Num  baú muito fundo
Num lugar muito ermo
Onde pensam nunca mais ter que passar e encarar a dor outra vez.
E  seguem, cometendo com os outros
O mesmo abandono que sofreram
Porque é melhor abandonar que ser abandonado
Essa dor que dilacera o nosso ser como um golpe de espada.
Melhor enganar do que aceitar que engana a si mesmo,
Melhor fazer o outro sofrer, porque não se pode suportar a própria dor.
Duro demais aceitar mas é preciso
Que os erros de nossos pais nos marcaram de uma forma  avassaladora
Que o amor só é verdadeiro quando é de entrega,
De confissão e de confiança
Que aceitar nossas falhas é crescer como gente
Que seguir errando os mesmos erros é um grilhão de dor
Do qual só nos libertamos  ao abrir o baú
Ao entrar no quarto
Ao resolver olhar o poço
Retornar à origem
Encontrar a temida dor
Deixá-la doer por algum tempo, em silêncio
E então, lentamente...
Começar a se despedir dela
Se libertar
Deixar que ela se vá ,como tantas outras coisas
Que precisamos deixar partir.
Sermos nós mesmos, com coragem.
Coragem para falar sobre nossos erros.
Coragem para aceitá-los, porque isso nos faz humanos.
Coragem pra pedir perdão.
Coragem para perdoar.
Coragem para perdoar-se.