quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O príncipe e o vendedor

Li em algum lugar uma opinião sobre a diferença entre o ignorante e o inocente.  O ignorante não sabia de nada e escolheu  seguir o bem.  O inocente sabia de tudo e apesar disso escolheu seguir o bem. 
Nesses tempos tão conturbados e confusos, a paz do inocente é talvez o caminho da tranquilidade que buscamos.  Tranquilidade interior, pois só conseguiremos barrar a onda pertubadora da vida moderna, com tantos apelos e exigências, se conseguirmos encontrar esse oásis dentro de nós mesmos...
E tem a ver com o tempo.  O tempo é senhor de nossa vida e na maioria das vezes, nosso algoz.  Já falei do tempo aqui antes, do nosso tempo versus o tempo de Deus. Esse tempo que se marca no relógio ( seja analógico ou digital, já reparou que tudo hoje em dia tem relógio? Celular tem relógio, microondas tem relógio, geladeira tem relógio...) esse tempo martela dentro de nosso peito, atrasado, atrasado, atrasado... É como o coelho branco da Alice, esbaforido, correndo,  com medo da tirânica rainha de copas cortar-lhe a cabeça: É tarde, é tarde, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde...
E aí, mais uma vez, me lembrei dele.  Até estranhei ele não ter aparecido aqui até agora.  Para fazer jus e como para me desculpar dessa ausência, levei um tempo procurando uma boa imagem dele.  Escolhi a tradicional, pois gosto dele assim, com sua espada, quase um Dom Quixote: ei-lo.  O Pequeno Príncipe.  Talvez a personificação dessa inocência que citei no início: desenha-me um carneiro.... 

O Princepezinho, na sua peregrinação, que é a peregrinação de todos nós,  encontrou um vendedor.

"- Bom dia, disse o principezinho.
- Bom dia, disse o vendedor.
Era um vendedor de pílulas aperfeiçoadas que aplacavam a sede. Toma-se uma por semana e não é mais preciso beber.
- Por que vendes isso? perguntou o principezinho.
- É uma grande economia de tempo, disse o vendedor. - Os peritos calcularam - A gente ganha cinqüenta e três minutos por semana.
- E que se faz, então, com os cinqüenta e três minutos?
- O que a gente quiser...
- Eu, pensou o principezinho, se tivesse cinqüenta e três minutos para gastar, iria caminhando passo a passo, mãos no bolso, na direção de uma fonte. . ."

O segredo do grande relógio está dentro de nós.  Diminuindo o passo, poderemos saborear o caminho.  Rumemos sem pressa, mãos nos bolsos, em direção à fonte...

O maior príncipe do mundo


sábado, 12 de fevereiro de 2011

O mérito da Donzela

"E lá partimos nós, sob uma luz diferente, sob um céu diferente, com um chão desconhecido, por baixo das nossas botas.  E no entanto, estamos vulneráveis, pois não temos como nos agarrar, nos segurar, nos apoiar, como saber - pois não temos mãos."




A Donzela sem Mãos - Última parte
 
"Ela caminhou muito.  O sol do meio-dia fez que o suor escorresse riscando a sujeira no seu rosto.  O vento desgrenhou tanto seu cabelo até que ele mais parecia um ninho de cegonhas com gravetos enfiados de qualquer jeito.  No meio da noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos das árvores.
Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso.  Caiu, então de joelhos, pois estava faminta.  Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou a comporta para esvaziar o fosso.
A donzela caminhou entre as pereiras sabendo de algum modo que cada fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles também eram vigiados. Mesmo assim, um ramo curvou-se bem baixo para que ela o alcançasse, fazendo o galho estalar.  Ela tocou a pele dourada da pera com os lábios e comeu ali em pé ao luar, com os braços atados em gaze,  os cabelos desgrenhados, parecendo um mulher de lama, a donzela sem mãos.
O jardineiro viu tudo mas reconheceu a magia do espírito que protegia a donzela e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer  aquela única pera, ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
No dia seguinte, o rei veio contar suas peras.  Ele descobriu que uma estava faltando mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto desaparecido.  Quando lhe perguntaram, o jardineiro tinha a explicação.
- Ontem à noite, dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim à luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pera que se oferecia a ela.
O rei disse que ia montar guarda aquela noite.  Quando escureceu, ele veio com o jardineiro e com o mago, que sabia conversar com espíritos.  Os três sentaram-se embaixo de uma árvore e ficaram vigiando.  À meia noite, a donzela veio flutuando pela floresta, com as roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco a seu lado.
Eles entraram no pomar na mesma forma que antes.  Mais uma vez a árvore curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pera que estava na ponta do ramo.  O mago se aproxomou-se deles,  mas não muito.
- Vocês são desse mundo ou não são desse mundo? - perguntou ele.
- Eu fui outrora do mundo - respondeu a donzela.  No entanto, não sou desse mundo.
- Ela é humana ou é espírito? - perguntou o rei ao mago, e o mago respondeu que era as duas coisas.  O coração do rei deu um salto, e ele se apressou a chegar até ela.
- Não renunciarei a você - exclamou ele. - Deste dia em diante cuidarei de você.
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram amarradas aos seus braços.  E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.
Passado algum tempo, o rei teve que combater num reino distante e pediu à mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo o coração.
- Se ela der à luz um filho, mande me avisar imediatamente.
A jovem rainha deu à luz um belo bebê, e a mãe do rei mandou um mensageiro até o rei para lhe dar as boas novas.  No entanto, a caminho, o mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio.  O Diabo saiu de trás de uma árvore e trocou a mensagem por uma que dizia que a rainha havia dado à luz uma criança que era metade cachorro.'"  ( Em outra parte do livro, a autora comenta que há uma versão da história mais explícita, onde a mensagem do diabo afirma que a rainha tinha dado à luz uma criança metade cachorro por ter copulado com as  feras da floresta).  O rei ficou horrorizado com a notícia, mas mesmo assim mandou de volta uma carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio, e sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceu junto à água.  Foi quando o Diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para "Matem a rainha e a criança".
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo confirmação.  Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendo junto ao rio enquanto o Diabo trocava as mensagens para outras que iam ficam ficando cada vez mais apavorantes, sendo que a última dizia: "Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta."
A velha mãe não pôde suportar a idéia de matar a doce rainha.  Em vez disso, ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu.  Em seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebê junto ao peito e, cobrindo-a com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a  vida.  As mulheres choraram e se beijaram na despedida.
A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem que jamais vira.  Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por cima, pelo meio e por volta do mato.  Quase ao escurecer, o mesmo espírito de branco de antes apareceu e a conduziu a uma pobre estalagem de gente simpática da floresta.  Uma outra donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e demonstrou saber seu nome,  A criança foi posta num berço.
- Como você sabe que sou uma rainha? - perguntou a donzela.
- Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha.  Agora descanse.
E assim a rainha ficou sete anos na estalagem e se sentia feliz com sua criança e com sua vida.  Aos poucos suas mãos lhe voltaram, primeiro como pequeninas mãozinhas de bebê, depois como mãos de menina e afinal como mãos de mulher.
Enquanto isso, o rei  voltou da guerra, e sua velha mãe se lamentou com ele.
- Por que você quis que eu matasse dois inocentes? - perguntou ela, mostrando-lhe os os olhos e a língua da corça.
Ao ouvir a terrível história, o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. A mãe viu sua dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela havia mandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.
O rei jurou não mais comer nem beber e viajar até onde o céu continuasse azul para encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio.  Suas mãos ficaram negras; sua barba, de um marrom semelhante ao do musgo; seus olhos avermelhados e ressecados.  Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada, mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
Afinal, ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta.  A mulher de branco convidou-o a entrar, e ele se deitou de tão cansado.  A mulher colocou um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu.  Quando ele chegou à respiração do sono profundo, o véu se enfunou e escorregou aos poucos do seu rosto.  Ao despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o contemplavam.
- Sou sua esposa, e este é seu filho.  - O rei queria acreditar, mas via que  a donzela tinha mãos. - Com todas as minha aflições e com meus bons cuidados, minhas mãos voltaram a crescer. - disse a donzela. E a mulher de branco trouxe as mão de prata que estavam guardadas como um tesouro numa arca.  O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia  houve uma alegria imensa na floresta.
Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um belo banquete.  Depois, o rei, a rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história para muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história para outros cem, que contaram essa história para outros cem, exatamente com vocês fazem parte dos outros cem a quem eu a estou contando."         

== FIM DA HISTÓRIA  ==

Quem gostou da história e quiser conhecer os significados implícitos de cada elemento ( o mago, o rei, a macieira florida, o Diabo, o moinho, o fosso, a pera ou a própria donzela) deve ir correndo ler as dissertações da Clarissa Estés.
De minha parte gostaria de compartilhar com vocês alguns pensamentos:
Se  a Donzela pudesse escolher não sofrer a dor da mutilação, nao teria ela feito essa escolha?  Se pudesse não ter vivido a decepção com os pais, a sensação de traição, de abandono, de falta de proteção, se pudesse não ter tido dizimados seus sonhos juvenis, não teria ela escolhido esse caminho? 
No entanto a dor se apresenta,  muitas vezes, inevitável , e por isso temos que aprender a enfrentá-la.  A dor é brutal.  A dor nos violenta, seja física ou emocionalmente, porque ataca sem piedade onde estamos mais vulneráveis.   A dor nos chicoteia, sem pena alguma.
O mérito da Donzela, a meu ver,  encontra-se no fato de seguir adiante e vencer a dor.  De não aceitar-se trancar no exílio, mesmo que de ouro e prata, mas sair perambulando sem nada, sem mãos, ao encontro de seu destino.  Se a Donzela não tivesse partido, não teria encontrado seu rei, não teria tido seu filho, e não teria , mais uma vez partindo, alcançado o verdadeiro conhecimento de si mesma e, consequentemente, o conhecimento do seu poder. 
Mais uma coisa:  na parte inicial da história, na terceira tentativa sem sucesso do Diabo de levar a donzela, diz-se que ele foi embora para sempre.  Ilusão, pois eis que ele surge, de novo de trás de uma árvore, trocando as mensagens e criando confusão e desencontro.  Assim a importância do discernimento, representado pela Rainha-Mãe, é tão fundamental em nossa caminhada.  Farejar, ouvir, prestar atenção à nossa intuição ( a boneca de Vasalisa), são habilidades que trazemos, e que devemos exercitar.  E principalmente, permitir que o "espírito de branco" se aproxime de nós, que seja nosso guia e nosso protetor, seguindo sempre ao nosso lado, reconstruindo nossas mãos, nossa vida e nossa fé.
A vitória da Donzela

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A donzela sem mãos

Atendendo a pedidos, eis a história da Donzela sem Mãos. Trancrevo-a tal e qual está no livro  da Clarissa Estés, para não perder nenhum detalhe, e para não privar os leitores do estilo apaixonante da autora.
Senta que lá vem história !!!!! 

"Era uma vez, há alguns dias, um homem que ficava na estrada e ainda possuía uma pedra enorme de fazer farinha com  a qual moía o cereal da aldeia.  Esse moleiro estava passando por dificuldades e não lhe restava nada além da enorme pedra de moinho num barracão e da grande macieira florida atrás da construção.
Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata para cortar lenha, um velho estranho surgiu de trás de uma árvore.
- Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em tom engambelador. – Posso adorná-lo de riquezas se você  quiser  me dar o que está atrás do seu moinho.
- O que está atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – perguntou-se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
- Dentro de três anos, virei buscar o que é meu – disse o estranho, rindo à socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo por entre os troncos das árvores.
O moleiro encontrou sua mulher no caminho.  Ela havia saído correndo de dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
- Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio mais bonito, nossas cadeiras rústicas foram trocadas por cadeiras enfeitadas de veludo, nossa pobre despensa está repleta de carne de caça, nossas arcas e baús transbordam de tão cheios.  Diga-me, por favor, como isso aconteceu .  -  E neste exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo foi puxado e preso num arco dourado.
- Ah – disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser de cetim,  Diante de seus olhos, seus sapatos de madeira com o salto tão gasto que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos sapatos .  – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante. – Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura, na floresta,  E ele me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás do nosso moinho.  Ora, mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
- Ai, marido meu ! – lamentou-se a mulher, dando a impressão de ter recebido um golpe mortal.  – O homem de casaco escuro era o Diabo, e o que está atrás do do moinho é a árvore, sim, mas nossa filha também está lá varrendo o quintal com uma vassoura de salgueiro.
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas em seus belos trajes.  A filha permaneceu sem se casar durante três anos e tinha o temperamento como das primeiras maçãs doces da primavera.  No dia em que o Diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e  ficou parada num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o Diabo estendeu  a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou do outro lado do quintal.
- Ela não pode mais banhar-se – berrou ele.  Ou não vou conseguir me aproximar dela. - Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram em que ela não se banhou até que seu cabelo ficou emaranhado; suas unhas, negras; sua pele, acinzentada; suas roupas encardidas e duras de sujeira.
Então, com a donzela cada dia mais parecida com um animal, surgiu mais uma vez o Diabo.  No entanto, a menina chorou, e suas lágrimas escorreram pelas mãos e pelos braços.  Agora, suas mãos e seus braços estavam alvíssimos e limpos.  O Diabo ficou furioso.
- Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela. 
- Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha ? – disse o pai, horrorizado.
- Tudo aqui irá morrer – berrou o Diabo.  – Você, sua mulher e todos os campos até onde sua vista alcance.
O pai ficou tão apavorado que obedeceu e, pedindo perdão à filha, começou a afiar seu machado de gume de prata .  A filha conformou-se.
- Sou sua filha.  Faça o que deve fazer.
E foi o que ele fez.  No final ninguém poderia dizer quem gritou mais alto, a filha ou o pai.  Terminou, assim, a vida da menina da forma que ela conhecia. 
Quando o Diabo voltou, a menina havia chorado tanto que os tocos que restavam dos seus braços estavam novamente limpos, e o Diabo foi mais uma vez atirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la.  Lançando maldições que provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu para sempre, pois havia perdido todo o direito sobre ela. 
O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também.  Como autênticos habitantes da floresta, eles continuaram como podiam.  O velho pai fez a oferta de manter a filha num castelo de imensa beleza e riqueza pelo resto da vida, mas a filha disse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse da bondade dos outros para seu sustento.  E assim ela fez com que atassem seus braços com gaze limpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como havia sido até então.
= FIM DA PRIMEIRA PARTE =


domingo, 6 de fevereiro de 2011

A caveira incadescente - o destino de Vasalisa

Baba Yaga voando em seu caldeirão

Voltando ao casebre no fundo da floresta sombria, encontramos Vasalisa despertando de seu sono e encontrando as tarefas cumpridas pela boneca.  Baba Yaga, ao chegar, fica satisfeita de ver tudo pronto mas ao mesmo tempo desdenha da capacidade da menina, dizendo que ela teve apenas sorte.  Nesse momento, a velha convoca seus servos invisíveis e pares de mãos surgem flutuando no ar para raspar e esmagar o milho, criando uma poeira dourada.
Baba Yaga mostrou então à Vasalisa um monte de estrume no quintal, onde havia milhões de sementes de papoula.  A velha ordenou que a menina separasse as sementes do estrume, fazendo uma pilha só com sementes e um monte somente de estrume, e que todo o serviço devia estar pronto quando Baba Yaga depertasse do seu sono.  Vasalisa nervosa consulta à boneca, e essa a tranquiliza, mandando-a descansar também, pois ela faria o serviço e tudo ficaria bem.
Assim, quando  a megera acordou, a tarefa estava finalizada e ela chamou os servos invisíveis para prensar o óleo das sementes de papoulas.  Vasalisa toma coragem e faz perguntas à velha sobre os cavaleiros que havia visto mas nada questiona sobre os pares de mãos que flutuam no ar.  Baba Yaga acha a menina muito ajuizada e pergunta o que a fez ser assim.
- Foi a bênção da minha mãe - disse Vasalisa, sorrindo.
- Bênção?! - guinchou Baba Yaga - Bênção?! Não precisamos de bênção nenhuma aqui nesta casa. É melhor você procurar seu caminho, filha. - E foi empurrando Vasalisa para o lado de fora - Vou lhe dizer uma coisa, menina. Olhe aqui! - Baba Yaga tirou uma caveira de olhos candentes da cerca e a enfiou numa vara. - Pronto! Leve esta caveira na vara até sua casa. Isso! Esse é o seu fogo. Não diga mais uma palavra sequer. Só vá embora.
A boneca começou a a saltar no bolso do avental, sinalizando que era hora de partir.  Era noite  e Vasalisa partiu rápido, caminhou resoluta pela floresta, a caveira na vara derramando luz nas trevas .através dos olhos , boca, e buraco do nariz.  Vasalisa teve medo daquela caveira poderosa e por um momento pensou em jogá-la fora mas a caveira falou com ela e a acalmou, dizendo que continuasse e levasse o fogo para casa.
Quando Vasalisa ia se aproximando da casa, a madrasta e suas filhas olharam pela janela e viram uma luz estranha que vinha dançando pela mata. Cada vez chagava mais perto. Elas não podiam imaginar o que aquilo seria. Já haviam concluído que a longa ausência da menina indicava que ela a essa altura estava morta, que seus ossos haviam sido carregados por animais, e que bom que ela havia desaparecido! Vasalisa chegava cada vez mais perto de casa. E, quando a madrasta e suas filhas viram que era ela, correram na sua direção dizendo que estavam sem fogo desde que ela havia saído e que, por mais que tentassem acender um, ele sempre se extinguia.
Vasalisa entrou na casa, sentindo-se vitoriosa por ter sobrevivido à sua perigoda jornada e por ter trazido o fogo para casa. No entando, a caveira na vara ficou observando cada movimento da madrasta e das duas filhas, queimando-as por dentro. Antes de amanhecer, ela havia reduzido a cinzas aquele trio perverso.

* * *  FIM * * *

De uma riqueza de símbolos ímpar,  a imagem da caveira incadescente numa vara refulgindo no meio da escuridão é o que mais me intriga e apaixona. Descobri que essa crença absoluta que a caveira é o símbolo do mal nos foi incutida, há muitos séculos, por uma religião intolerante, e que não é bem assim... Em muitas culturas o culto sagrado e respeitoso aos ancestrais tinha a caveira como a catedral  do conhecimento que os antigos deixavam para os mais jovens, e através das órbitas vazias, janelas dessa catedral, fluía a luz do conhecimento que deveria passar de geração para geração.  Alíás, em uma conversa com uma sábia sobre enterro ou cremação dos que já partiram para o outro lado, refleti que temos uma relação muito ruim  com os nossos ossos, fruto também dessa crença que nos foi incutida... E me lembrei de um outra história sobre ossos, "A cantadora de ossos"...  E também outra, " A Mulher-Esqueleto"... Compartilharei com vocês essas histórias em outros encontros nossos, ao redor dessa fogueira virtual que é esse papiro de Nefertiti.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Era uma vez...

Vou contar do meu jeito:

No interior simples e longínquo da Rússia , uma mãe no leito de morte dá à sua amada filha, Vasalisa, uma pequena boneca de pano.  Essa boneca deverá ser a companheira inseparável da menina, quando a mãe se for. Ela nunca estará só enquanto estiver com a boneca, e deverá consultá-la sobre tudo, ouvindo sempre sua opinião.  Após a morte da mulher, o pai, depois de pranteá-la, casou-se novamente, como em todo bom conto de fadas, com uma mulher que tinha duas filhas.  O pai , ingênuo ou enfeitiçado por essa nova vida, não percebe que a madrasta não suporta Vasalisa, e quando ele está ausente, faz, junto com as filhas, o que é possivel para explorar e atazanar Vasalisa.  Até que uma noite, fingindo que o fogo da casa se apagara, mandam Vasalisa para a floresta, em busca de Baba Yaga, a terrível bruxa, única que poderia dá-las o fogo para aquecer e cozinhar.
Vasalisa parte então floresta adentro, acompanhada apenas de sua boneca, sem desconfiar que às suas costas as malvadas já comemoravam a morte certa da menina. No meio da densa e assustadora floresta, a cada bifurcação do caminho, Vasalisa consultava a boneca que caminho seguir, e depois a alimentava com pequeninos pedacinhos de pão. Apesar do medo, Vasalisa avançava segurando dentro do bolso do avental a querida boneca, que a guiava cada vez mais para o coração da escuridão.  Vasalisa viu um cavaleiro  branco num cavalo branco trazendo o dia; mais tarde um cavaleiro vermelho num cavalo vermelho trouxe o sol, e por fim um calvaleiro vestido de negro trouxe a noite, entrando direto num casebre feito de caveiras e ossos, onde morava a terrível Baba Yaga.  A casa ficava em cima de pernas de galinha, andava de um lado para outro, às vezes girando como um pião. A bruxa se movia dentro de um caldeirão voador e era tão feia e assustadora como toda bruxa deve ser. Era sabido que Baba Yaga comia suas vítimas, e todos aqueles ossos e caveiras pareciam não desmentir tal fato.  Gritando de seu caldeirão e segurando sua vassoura, Baba Yaga irritada questiona a menina sobre o  que ela quer.
- Vovó, vim apanhar fogo.  Está frio na minha casa e sem ele o meu pessoal vai morrer.
- Ah, sei.  Conheço seu pessoal...Você deixou o fogo apagar, sua inútil.  E o que a faz pensar que eu lhe daria a chama?
- Porque estou pedindo - respondeu Vasalisa, depois de consultar a boneca.
- Essa é a resposta certa.  Mas não lhe darei o fogo se não realizar  algumas tarefas pra mim.  E se não as realizar... - ameaçou - você vai morrer, minha filha.
E assim Baba Yaga ordenou a Vasalisa que lavasse a roupa, varresse a casa e o quintal, preparasse a comida e ainda separasse o milho mofado do milho são. A velha acrescentou que sairia e quando voltasse tudo deveria estar pronto, caso contrário, a menina seria o banquete.
Vasalisa, nervosa, consultou a boneca sobre o que fazer, e essa a orientou que dormissse pois ela cuidaria  de tudo..
CONTINUA  NA PRÓXIMA POSTAGEM !

O sono de Vasalisa


O adeus à Vasalisa

Sempre gostei de histórias.  De contos de fadas, de lendas, de parábolas.  Das fábulas de Esopo e dos contos de Grimm.  Das grandiosidades mitológicas e da singeleza do folclore.  De Sherazade, transformando o seu destino trágico em felicidade através das histórias derramadas noite após noite na cama do Califa.  Nos últimos tempos tive oportunidade de entrar em contato com muitas histórias inusitadas, desconhecidas ou mesmo aquelas histórias que, quando as ouvimos, despertam em nós um sentimento de resgate de coisas há muito aprendidas, e depois adormecidas.  Assim me deparei com histórias como a do assustador Barba Azul , a qual nunca havia ouvido direito; a lenda da Mulher-Esqueleto e da Mulher com pele de foca , a interpretação de toda a jornada do Patinho Feio e o drama dos enlouquecedores Sapatinhos Vermelhos. Reencontrei a triste história da Vendedora de Fósforos, livro que ganhei na infância, e conheci Baubo, de quem já falei aqui.  Porém nenhuma delas me impressionou tanto como Vasalisa e a Boneca, talvez somente outra de igual impacto, a Donzela sem mãos.
Gostaria de compartilhar com vocês a história de Vasalisa.  Essa história me fez enxergar coisas que eu só intuía, como a síndrome da Gata Borralheira explorada (porque se deixava explorar) e me fez desejar assistir novamente "A viagem de Chihiro" , agora com os virtuais óculos 3D do discernimento... Pois ao ler Vasalisa e a Boneca, reencontrei a Velha do filme, a Baba Yaga,  a Velha que Sabe, a Mãe Selvagem do Self.  Nessa história, Vasalisa realiza sua jornada de busca e de conhecimento, enfrentando e vencendo  seus medos, deixando de ser a pobre menina e se tornando uma poderosa mulher.  A Boneca, que a acompanha sempre, é sua intuição, que a guiará em segurança nessa viagem pela floresta.  Viagem que, chegado o momento de cada um, devemos empreender todos nós...
Curiosos para conhecer Vasalisa, a Boneca e a terrível Baba Yaga?  Então aguardem...